quarta-feira, 29 de outubro de 2008

a ousadia da esperança

Tive que entrar para contar do sonho tão louco que me acometeu esta madrugada.

Entre os milhares de detalhes sórdidos e inexplicáveis, o mundo tinha se tornado um lugar onde as pessoas precisavam escolher se queriam reproduzir ou se queriam criar filhos. Algumas pessoas queriam reproduzir, daí se especializavam nisso e reproduziam aleatoriamente, porque trabalhavam como profissionais do sexo ou da indústria do cinema pornô. Outras pessoas queriam criar filhos, então começavam a se preparar desde muito pequenas para educar filhos. Havia uma coisa chamada O Baú, que cada pessoa que optava por criar filho tinha que ter. N'O Baú, ficavam todas as coisas que a pessoa tinha aprendido, era como um curriculum vitae enorme e impossível de transportar. Tinha meninas de seis anos que já tinham sido consideradas aptas pela análise do seu Baú, e estavam criando filhos de terceiros, que eram profissionais do sexo e da indústria do cinema pornô.

Cabe dizer, em defesa do meu inconsciente, que o cenário disso tudo era um mundo que tinha se acabado. Não havia mais livros, filmes, discos, computador. Não havia mais comida, não havia mais nada, só uma areia amarela e seca. Muito poucas pessoas tinham sobrado. Muito pouco acesso ao conhecimento tinha restado. Então as pessoas remanescentes resolveram se agrupar e produzir pessoas de uma forma taylorista, que é a narrada acima.

Tem toda uma história investigativa de uma moça em busca de sua misteriosa identidade, que é a linha condutora do sonho, ou seja, o sonho serviu como entretenimento também - embora um entretenimento com excesso de emoções, não precisava tanto. Mas a ousadia da esperança, expressão usada pelo prefeito reeleito Fogazza, acontece no final do sonho e aparentemente não tem nada a ver com a produção de seres humanos em série. É que no final do sonho começam a chegar pessoas numas barracas de feira, como aquelas que este município aqui construiu nos arredores do mercado público dessa cidade. As pessoas trazem hortifrutigranjeiros. Num mundo onde até então só havia areia amarela e seca e onde as pessoas se viam forçadas a comer outras pessoas, hortifrutigranjeiros são a própria ousadia da esperança. A esperança de não ser comido, de não se ver obrigado a comer o semelhante e sobretudo a esperança da restauração da vida, de que até mesmo o que passa pela mais séria hecatombe é capaz de se regenerar.

Ou isso ou o sonho é um aviso peremptório do meu corpo, POR FAVOR, VIRE VEGETARIANA.

o murro na ponta da faca

A mão esquerda vai cair. Ela vai. Estou sentindo. A dor deve ser uma necrose qualquer que ninguém sabe, uma necrose alien como os aliens de Giger. E um dia ela vai cair. E o que vou colocar no lugar? Um gancho.

E o gancho aqui é: doerá a mão esquerda em sua titilante tendinite por conta de estar esmurrando a ponta da faca todos os dias, durante as mesmas bat-horas no mesmo bat-local? Há quem diga, 'fulano cansou de dar murro em ponta de faca'; vos digo: esta fulana aqui também cansou. Mas o circo dos horrores ainda paga melhor do que qualquer outro lugar, e quem escolhe ser mãe de uma família sem pai precisa saber que está muito mais sujeita a esmurrar facas do que a arremessá-las.

Enquanto as mãos doem, faço planos, planos concretos. Remo nos porões das galés. Para parar com essa vida circense recheada de engrenagens ávidas por mastigá-lo inteiro. Um circo que não sai do lugar e de que você tampouco sai.

Pague para entrar. Não reze para sair, porque não adianta.
A mão amiga é essa mesma aí, gauche na vida e com tendinite. Mas ela é sua e por isso você sabe que pode confiar.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

a árvore cai na floresta e ninguém ouve

Tenho uma vida. Especialmente aqui dentro. Há conflitos. Há toda uma faixa de Gaza dentro de mim.
Só não divulgo. Não conto. Não anuncio. Não confesso.

Eu tenho uma vida. Mas ninguém sabe. Então, eu tenho uma vida?

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Cidinêi Chel, Dom

Quando vira a meia-noite e tendo lido certas coisas adequadas (ou inadequadas, dependerá do ponto de vista do leitor) o meu humor vira uma coisa tão incrivelmente Mr. Hyde que não é possível contê-lo e ele extravasa pelos dedos pelos poros pelo ar bafejado das narinas, em haustos disparados soprados que correm malucos sobre as teclas desse computador feito de duas caixas de papelão, um arame e um rolo de duréqui. Ele voa matreiro ligeiro e escreve as coisas mais geniais e totalmente ID-ílicas que guardo aqui no mais profundo escuro do baixio do ventre, lá onde tudo é eu e nada mais. Elas nascem cantando dançando loucas, desvairadas com olhos de personagem de Fernando Gonzalez e corpo de H.R. Giger, e elas querem dançar o frevo e pensam que são bonecos cabeçudos das ladeiras de Olinda.

Quando vira a meia-noite e tendo me intoxicado das coisas certas na sua exata medida - dois tylenol 750, dois pedaços de chocolate Tá-Lento com passas anciãs dentro, dois goles de coca cola sem gás e dois bocados de comida chinesa de dois dias atrás - os humores do corpo me nascem novos como se brotando pela primeira vez a seiva da maturescência dos hormônios peculiares que trazem a abstração e o conhecimento, essa coisa amorfa que se guarda a si mesma na raiz da mandrágora e também nos pedacinhos de gengibre. Novos os fluidos todos, brilham os olhos, brilha o cérebro, brilha tudo numa efusão goianense de Césio-137 pela percepção do velho com os olhos do novo, e é como se estivesse de novo agora com a idade do meu filho, trinta anos na cara mas treze anos no olhar e tudo parece delirantemente jovem-velho, é o olhar jovem desvestindo a traparia velha que cobre tudo o que não há de novo sob o sol.

O problema, que o senhor Cidinêi já sabia, é que a meia-noite tem duas metades, e sempre há a metade anterior que vem antes da posterior e que virá necessariamente após a posterior de novo, o outro lado da meia-noite que passo do lado errado do computador, do lado errado da sala, do lado errado dos papéis, do lado errado da rua, do lado errado do mundo, do lado errado da vida. E que me dão solidez segurança solidariedade para compartir esse mundico de meia-meia-noite com todas essas pessoas que amo e dependem de mim. E que nem sonham, nem sonham, o baile anárquico gomorreano e desenfreado que se instala nessa mente nesse corpo se houver adequadas condições de temperatura e pressão, se houver suficiente intoxicação pelos males da cultura con-fusion, se houver nenhum motivo para rir desvairada, se houver amanhã.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

incognito

Andei lendo por aí uns navegadores que permitem que você habilite um 'modo incógnito', também chamado 'modo pornô', que não armazena traços de coisa alguma, não deixa cookies, não registra a página no histórico, não tem cheiro e não solta as tiras. Amei muito, porque a coisa que mais gosto é o anonimato. Anonimato é quase como ser invisível, e já que sou invisível para tanta coisa boa, eu quero ser invisível para as ruins também.
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Só não quero ser invisível para quem amo - que é pouquíssima gente, convenhamos. Para esses, queria ser um enorme outdoor Las Vegas Style, berrando louca e frenética num festival de cores neônicas piscando num desenho amalucado digno de Pucci.
Sou um pavão que anda 99% do tempo com a cauda fechada, lowprofilemente. E, como todo pavão, meus pés são horrendos. E são a minha parte favorita do corpo.
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Só H.R. Giger compreenderia. É por isso que ele ilustra o que está ali em cima, a Mulher Galvanizada herself dando as boas vindas a você, ser de língua cilíndrica, pedindo-lhe mudamente com seus olhos vidrados, "mostre-me seus lugares escuUuUuUuros". Aprecio olhar as coisas bonitas, mas são as escabrosas que me conquistam, porque elas me intrigam. E Giger, vamos combinar, fez coisas deliciosamente lindas com elementos escabrosos. Amo Giger quando vejo seu trabalho. Esses alemães da arte. Ah.
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Não gosto de deixar traços. Paradoxalmente, tem esse blog. Porque paradoxos são gostosinhos. E porque, já que não dá para existir sem deixar resíduos, então deixe eu enfiar o pé na jaca dos meus paradoxos. Não tenho como ganhar essa briga, então nem vou começar a brigar.
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E, para terminar, eu preciso dizer: JAMAIS PENSEI QUE FOSSE ASSIM.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

preguiça demais

vim aqui pra escrever mas me deu uma preguiça tão grande mas tão grande que não vou nem colocar ponto nem maiúscula nem nada e nem assuntar sobre coisa alguma só dizer que as férias acabam amanhã e isso é suficiente para justificar toda uma preguiça embora eu seja uma preguiçosa de carteirinha e não precise de nada para justificar minha leseira era isso perdoe a preguiça alheia e tenha um bom dia sem ponto final

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

sorrindo silenciosamente

Tenho um filho que cresce e se descobre homem embora ainda menino. Passo pela frente do colégio dele na hora do intervalo, não porque seja uma stalker de filho, mas porque estou em férias e resolvi voltar caminhando do compromisso no meio da tarde, e ver o sol e o vento brincando no cabelo das pessoas, tudo o que olho da janela do trabalho e queria estar aproveitando - pois bem, aproveitei. Aproveitei também para ver os jovens reunidos na frente do colégio. A juventude, com suas modas supostamente extravagantes que em verdade são uma amálgama semi-aleatória de uma série de conceitos desfilados desde os anos 50. A juventude e seu aroma hormonal intenso misturado com o cheiro de leite que vai se evaporando devagar, junto com a infância. A juventude e os sorrisos, a beleza intensa e incomparável de estar florescendo, as descobertas, os olhos brilhantes e tanta, mas tanta insegurança. A juventude e seus medos e a maravilha de estar vivendo tudo pela primeira vez, como se o mundo estivesse nascendo agora. E está.

A maravilha da juventude é que ela traz o novo nos olhos. Aos trinta e tantos anos, há muito já sei que não há nada de novo sob o sol. O novo está nos olhos de quem vê, e o fato é que precisamos de muitos olhos novos, de muita coragem indômita porque inocente, naïf, primitiva. Precisamos que acreditem, que revolucionem, que encontrem novas formas de fazer tudo isso que é velho e empoeirado a séculos sob esse sol milenar que mata todas as perguntas. Precisamos que nos consolem da nossa finitude, nos assegurem que o trabalho não foi em vão e que ao menos as idéias permanecerão - poderão ser discutidas, negadas, rechaçadas, mas estarão presentes.

Caminho por entre a nuvem de jovens, imersos em seu recém-nascido mundo, que cheira a leite e hormônios, como eles. Um mundo louco de vontade de viver e sentir e criar, um mundo pronto para quebrar todas as regras que precisarem ser quebradas. Não consigo evitar o sorriso ao atravessar o delicioso e admirável mundo novo que acabo de vislumbrar: a jovem de dezesseis anos bem escondida aqui dentro reconhece-se em seus iguais e grita que SIM! É POSSÍVEL! e sempre será tempo.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Kaddish



Depois de assistir Ensaio sobre a Cegueira, a única coisa que conseguiu me consolar.

Acho que nunca vou entender o que é ser humano. Assola-me essa combinação agridoce e amarga de doçura e fúria, de redenção e perdição. O paradoxo humano me assusta, porque é praticamente a única coisa humana na qual me reconheço.

Para mim, para você, para eles. Para nós. Kaddish. Perdoaimo-nos uns aos outros, porque, em verdade, não sabemos o que fazemos.
Ou sabemos até demais, o que dá no mesmo.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

chuva dispersa nonsense

Fui num aniversário. Chovia incessantemente. O aniversariante e mais duas pessoas, eu era a terceira. Na mesa, dois conversando e dois calados. Percebo que a minha eremitice está me tornando inapta para o convívio social. Mas quando paro e vejo o que é o convívio social, continuo sem vontade de fazê-lo.
Sou esquisita. Mas com consciência. Talvez exatamente pela consciência é que eu seja esquisita.


Coloquei hoje uma roupa de baixo bem maior que não usava porque ficava desapontada de tirar a roupa de cima e ver aquela roupa de baixo por baixo. Por acaso despi a calça e olhei minha imagem de relance no espelho. Percebi que a região glútea não está desabada ou desabando como pensei que estivesse, pelo contrário. Agora não sei se isso foi ilusão de ótica ou se é fato. A roupa de baixo em questão é aquelas lingeries tipo short que, caso você tenha volume nos glúteos como eu, ficarão umas bochechas aparecendo por baixo da barra, como quem diz 'oi, você por aqui!' Pois é, eu vi as bochechas, elas me deram o seu 'oi!' bem-humorado de bochechas gluteais sorridentes e eu fiquei algo supresa porque a degradação do corpo não era tanta quanto eu imaginava.


Quando a coisa é pior do que se imagina, adotam-se medidas drásticas de emergência. OK! Conheço esse riscado!
Quando a coisa é melhor do que se imagina, o que se faz? O que se faz? Como faz?


Talvez a vida esteja difícil porque não é tão ruim quanto estou imaginando.
Eu sou uma pessoa de paradoxos. Um jeito sutil e fofinho de dizer quer sou uma pessoa que complica.


O gato Pantufo gosta de me acompanhar ao toalete. Ele aprecia me observar enquanto faço os usos mais íntimos que uma pessoa pode fazer do seu toalete. Curiosamente, não fico constrangida pelos enormes olhos corújicos do gato Pantufo. Compreendo ele. Eu também fico olhando quando ele vai à caixa de areia para ver se ele não vai fazer o seu clássico reposicionamento que consiste em colocar para fora da caixa a parte do corpo que vai fazer a caca, resultando numa caca fora da caixa e em profunda ansiedade para o gato Pantufo, que fica tentando cavar na máquina de lavar roupa, no piso, na parede, para enterrar a caca que ficou fora da caixa. O gato Pantufo provavelmente fica estudando como eu faço na minha caixa - que não é de areia, é de água - para sempre conseguir acomodar o corpo de modo que tudo fique direitinho dentro da caixa. Ou o gato Pantufo deseja secretamente que um dia eu também faça a minha caca fora da minha caixa, para que ele não seja o único a estar sempre errado e eu sempre certa.
Não é fácil ser o gato Pantufo, minha gente.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

a maluca

Às vezes acontece como acontecia quinze, vinte anos atrás. Saio pelas ruas com o meu semblante sério de sempre, os olhos baixos que espiam as coisas de canto, querendo ver sem serem vistos. A roupa composta, a cara composta. Postura. E, por dentro, uma fome vulpina, predadora, queimando as entranhas como pimenta forte. A ânsia de tomar todos os homens que me virem ao encontro, indiscriminadamente. O mendigo, o vizinho, o pai-de-todos, o fura-bolo, mata-piolho! e todos muitos mais. O dono do boteco, o efebo da vendinha, o sujeito de terno que cruza a rua, o velho dirigindo o carro mais velho ainda, o motorista do táxi. Não tem para ninguém, não tem perdão. É uma fome louca essa que queima lá embaixo, como se os grandes - e os pequenos - lábios estivessem salivando e estalando, fazendo 'nham-nham-nham, yummy', e a impressão é que o vazio dali vai sugar o mundo inteiro para dentro de mim e vou explodiiiiiiir e isso será absolutamente fantástico. Penetrada por um mundo inteiro, porque preciso de um mundo dentro de mim para me saciar.

Daí fico vendo as caras e os jeitos desses homens todos que o acaso me colocou no caminho, e pensando no que poderiam eles estar pensando, talvez no jogo do time de futebol mais tarde, nas contas a pagar ou em comprar cebolas para o jantar, e em como seria inusitado que eu me postasse na frente deles, com olhar alucinado e sorrindo, e lhes arrancasse as calças e iniciasse os trabalhos. Seria desvairado e maravilhoso. Quando chego nessa parte, de visualizar a cara de espanto e terror - sim, terror perante a desfaçatez de ser despojado de suas vestimentas por uma mulher maluca sorrindo um sorriso alvar - do incauto ser do sexo masculino, não consigo me controlar e rio alto, sobressaltando as pessoas que passam. Elas instantaneamente recuam e baixam os olhos ao verem meu rosto desfigurado pelo riso louco, os olhos brilhantes e arregalados, e murmuram baixinho para seus conhecidos, "lá vai ela, a maluca".

segunda-feira, 21 de julho de 2008

velha sem saco

Fiquei dias sem conseguir logar aqui. É. Não pergunte, eu também não entendi. Subitamente, out of the blue, consegui entrar. Ficou a sensação de ter esquecido a chave em casa e batido a porta. A diferença é que eu sei arrombar minha própria porta caso esteja fechada só no trinco.

Eu estou ficando velha. No sentido 'velho' do termo. Não só pela passagem do tempo, eu envelheci repentinamente. Já não entendo muito bem os sites e consigo a proeza de ficar trancada fora deles. Tenho um filho jovem que me faz lembrar de quando fui jovem, e parece que foi ontem mas foi há muito tempo. Os meus pais estão cada vez mais velhos e doentes, a ponto de eu agradecer todos os dias por ainda ter pais. Eu sabia português, e eu sabia que sabia, agora me pego súbita no meio da frase desconfiando dela e sem conseguir lembrar se aquilo está correto ou não. Desaprender. Se isso não é velhice, eu não sei o que é.

Não conto nada muito gostoso, então vou contar da coisa gostosa que comi: pizza lombo com catupiri da Sadia. Congelada, baratinha e tão boa, mas tão boa, nem parece uma pizza congelada de supermercado. Parece uma pizza, period. Ou talvez fosse a minha fome.

Por que as pessoas ligam pra fazer telemarketing para mim no meu telefone do trabalho? Que tipo de insânia é essa? Elas devem pensar que eu não trabalho, que vou até o trabalho e fico lá estaqueada como uma espantalha, atendendo um telefonema de telemarketing atrás do outro. Pessoas do marketing, olha, é MUITO contraproducente ligar para fazer telemarketing no telefone do trabalho das pessoas. MUITO MESMO. E isso nem é resmunguice de velha, isso é fato.

Eu estive dia desses (noite dessas) na frente de um lugar onde fui muito infeliz. Passei por ali e it gave me the creeps. Mas por que as coisas são assim? Preciso mesmo ficar atrelada às lembranças infelizes? Não dá para tentar ver o lugar de uma forma diferente? Eu não sei. E acho que esse apego a lembranças infelizes também é coisa de gente velha.

Carreguei um microondas e umas outras coisas aí durante o final de semana. Agora estou com uma dor absurda nas espáduas. Eu me lembro de carregar coisas e ficar faceira e pimpona depois, há menos de dez anos atrás. Isso é ser velha. Isso é velhice supersônica exponencial, que desaba sobre a cabeça da pessoa e ela envelhece instantaneamente. Quase como aquelas sopinhas de saquinho que você põe água quente, mexe e pronto. Uma velhice superinstantânea, com alto teor de sódio.

Eu gostaria de ir para a cama com o Coringa. O Coringa do Heath Ledger. Mas ele provavelmente ia só rir de mim e mais nada.
É triste quando a fantasia erótica da pessoa é ir pra cama com um vilão psicótico de gibi. Mais triste que isso só se eu quisesse pegar o Cauã Reymond (Raymond, Rain Man).

Tem gente que se acha. Ainda me espanto com isso. Mesmo velha e sem saco.
Eu me perdi e não me acho mais em parte alguma. Tem só essa velha sem saco aí no espelho dizendo que sou eu. Fico pensando se é uma piada, como ir para a cama com o Coringa e ele só rir de você e ir embora - você ali, pelada, super a fim de fazer loucuras e o louco himself a renega.

O tuíter, aquele, é uma coisa tão telegráfica. Vivemos num mundo telegráfico. Amores telegráficos, amigos telegráficos, orgasmos telegráficos. Só o trabalho continua extenso. O trabalho, esse sim, é um novelão em vinte tomos, caligrafados por um monge copista.

Eu tenho velhice instantânea, excesso de palavras acumuladas e nenhum saco.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

33 cravos na cruz (and counting)

Nasci às 22h, trinta e três anos atrás. Para cada ano que vivi, uma cicatriz na alma. É, sou dramalhona.

domingo, 22 de junho de 2008

momento Halls from Hell

Às vezes a realidade vem e, não contente em esbofetear a orelha, dá de brinde cuspida no olho, bica na costela, voleio na nuca e tapa na cara.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

pacto

Então fica combinado assim: você não pergunta e eu nunca responderei. Eu não lhe contarei de todas as vezes em que os seus atos, ações e omissões me magoaram absurdamente e de como me senti terrivelmente abandonada por toda uma vida, desejando entender o que havia por trás daquilo tudo, e você passará a se comportar com gentil distância e fria polidez. Você não dirá mais nenhuma das suas espinhosas palavras que estalam como chicotes, não fará nenhum questionamento, nem mesmo me fitará com seu permanente olhar inquisitivo e, em troca, eu me compromento a manter tudo aquilo que sou - e que você não sabe, nunca soube, não quis saber - a uma distância segura da sua agora embotada capacidade de percepção. Andaremos então cada vez mais juntas, nesse estranho período que combinará o limiar da minha meia-idade com os primeiros sinais da sua senilidade. Eu não farei nenhuma exigência, meus lábios não mais se abrirão para qualquer reclamação. Eu lhe darei sorrisos, tão sinceros e abertos quando possível. Em troca, o rosto no espelho será cada vez mais o seu, e assim nunca mais me sentirei sozinha.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

bidimensionalidade unidimensional

Ela tinha uma estranha empatia por todos os bichos fofinhos e bonecos simpáticos que essa ciência fundamental à vida humana, a propaganda, criava para divulgar produtos e, principalmente, convencer o incauto de que ele precisava desesperadamente do que era divulgado. Sentia-se entre enternecida e constrangida ao fitar, no verso da conta de luz, o bonequinho simpático e sorridente vestido com o uniforme da companhia de energia elétrica, alertando afavelmente sobre os riscos do mau uso da eletricidade. Tinha uma queda toda especial pelo boneco careca e bonachão que convidava as pessoas a jogar na loteria e, quem sabe, ter dinheiro para realizar doces e gentis sonhos que envolviam a cálida existência de uma família feliz. Na sua cabeça, o boneco ilustrando um empregado da companhia de energia elétrica tinha toda a aparência de alguém que era feliz com seu trabalho, que era condignamente remunerado e que ia contente, ao final de cada jornada cumprida, para um lar amoroso onde seria alimentado e nutrido de todas as boas e simples coisas que os humanos pateticamente necessitam. Para ela, o faceiro boneco careca da lotérica parecia um bem-amado marido e pai de família, uma pessoa gentil rodeada de carinho por todos os lados, cujos olhos de papel fitavam seu íntimo e pareciam convidá-la, 'venha, se você jogar, talvez você ganhe, talvez o amor aconteça, talvez as pessoas sorriam umas às outras com afeto verdadeiro, talvez isso tudo afugente esse corvo que rói incessantemente esse fígado que se regenera todos os dias e que lhe consome em dor e desespero'. Por alguns instantes ela era toda aturdimento, como podia ser assaltada por essas idéias inverossímeis que não reconhecia como suas, logo ela, que conhecera desde cedo, ávida, toda a bile da existência? Tendo mergulhado no poço escuro sem fundo das sombras da metade negra da condição humana e se familiarizado com diversas espécies de farpas, amputações e agonias, os ecos que as imagens meigas lhe evocavam não eram, em absoluto, confortantes. Pois que há muito já sabia que os empregados de qualquer lugar, inclusive da companhia de energia elétrica, não eram felizes com o seu trabalho, recebiam um pagamento muito aquém do merecido e jamais ouviam uma palavra de encorajamento. Iam longe os tempos em que descobrira que homens e mulheres não são bem-amados esposos, pais e mães de família, são apenas homens e mulheres cheios de desejos que ardem e lhes consomem, que questionam todo o tempo se deveriam ir ou se deveriam ficar e se a escolha feita foi mesmo a mais acertada - e, enquanto questionam, deixam de perceber e de fruir a eventual riqueza, ainda que pequena, que possuem.

Ela mesma queria ter a possibilidade de se doar o tanto que seus sentimentos lhe pediam. De poder ajudar qualquer pessoa que lhe procurasse, a qualquer hora e sem nenhuma reserva. E assim colher o sorriso aberto, sincero, proveniente da realização da pessoa auxiliada. Mas isso não era viável, pois as pessoas muitas vezes não querem auxílio: elas querem salvação. Dizem-lhe que querem aprender a andar, mas em verdade desejam é que você as carregue no colo, pelo maior tempo possível. Além disso, foi percebendo que a recíproca não é - nem nunca foi - verdadeira. Aqueles que conseguira auxiliar não tinham como auxiliar de volta. Fosse porque estavam muito ocupados com suas coisas - lembre-se, foram pessoas que precisaram de auxílio - ou porque não eram capazes de dar, somente de receber, fato é que eles não podiam. De forma que ela descobriu que a única mão amiga com que podia sempre contar era aquela que estava no final do seu próprio braço. E descobriu também que, se a única mão com que podia sempre contar era aquela ao final de seu braço, era fundamental mantê-la firme, forte e descansada, de sorte que estivesse em plenas condições quando dela precisasse. Assim, calou os sentimentos e procurou mostrar às pessoas sua nova descoberta, a própria mão da pessoa ao final do próprio braço dela, e dizer-lhes das maravilhas que aquela mão - aquela, e não a sua - poderia fazer pelo próprio dono. As pessoas retiravam-se, ofendidas, acreditando-se ludibriadas. E assim ela viu que os sorrisos de muitos eram meros expedientes para conseguir o máximo em troca de um mínimo esforço.

Andando pelas ruas, ela não entendia essa supervalorização de supostas virtudes tão divorciadas do espírito humano. Por que a celebração da generosidade, da solidariedade, do amor e da amizade, se o instinto humano é por natureza egoísta, mesquinho, invejoso, cruel? O que explicaria - se é que explicaria - a necessidade de manter uma eterna disputa interna entre desejo e virtude? Por que o sexo é dissociado do amor? E quem disse que amor é bom? Por que os relacionamentos de afeto são recheados de inveja, competição e ressentimentos? Por que, se cada um é único, todos se comparam uns com os outros? E, principalmente, por que, se sabia que tudo isso é tão abominável, por que ela não conseguia escapar a essa dualidade, que consome o que é humano desde a aurora da sua existência?

Lembrou-se de uma parábola contada quando era menina. Da existência de dois lugares distintos, sendo que em ambos havia era um círculo de pessoas, munidas de uma colher extremamente longa, em torno de uma grande pilha de arroz. Em um lugar, as pessoas enchiam as colheres extremamente longas e se alimentavam umas às outras, em total reciprocidade - e isso seria O Bom. No outro lugar, as pessoas insistiam em utilizar as colheres extremamente longas para pegar o arroz e levarem às suas próprias bocas, no que não tinham nenhum êxito, pois, em vista do comprimento da colher, que exigia grande movimentação no servir e levar à própria boca, o arroz caía todo da parte côncava, pelo que as pessoas todas permaneciam famintas, embora tivessem a grande pilha de arroz e o instrumento para se alimentarem - e isso seria O Ruim. E pensou que O Bom não era inteiramente bom, já que, em última análise, a sobrevivência dependia da gentileza de estranhos, da mesma forma que O Ruim não era de todo ruim, pois ao menos as pessoas ali tinham iniciativa. Concluiu que muitas vezes o erro está em se esperar demais de uma fórmula, uma convenção, um instrumento: não havia problema com as pessoas ou com o arroz, o problema era a colher. Decidiu que não usaria colheres e pegaria o arroz com as mãos nuas, aquelas que ficam ao final dos seus braços e nas quais pode sempre confiar. Dessa forma, jamais sentiria fome novamente.

Porém, continua sentindo o coração pateticamente apertado quando passa por uma lotérica ou recebe a conta de luz.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

pequenos mistérios cotidianos

--> Na minha casa tem gatos. A fêmea comporta-se lindamente, só é um pouco excessivamente melosa, como toda fêmea é. O macho é imprevisível, incompreensível e burro. Por mais que a caixa de areia esteja limpa e cheirosinha esperando pelo supremo batismo da sua urina felina, vez que outra dá uma incontinência no bichano e ele esvazia o que parece um caminhão-pipa repleto em cima dos estofados ou da minha cama. Já mostrei para ele o quanto isso me desagrada, sendo a última manifestação de desaprovação um exílio de três dias na sacada da frente. Não adianta, quando lhe dá na veneta o ser peludo vem e lava o estofado mais próximo com sua rica essência. Eu não o amo mais por mijar tudo, pelo contrário, eu o amo menos quando ele faz isso e não tenho vergonha de admitir o fato. Ele continua fazendo. Deve ser irresistível fazer essa mijalança, ou talvez seja o que sempre desconfiei, que amor demais é uma coisa que sufoca as criaturas.

--> Comprei esmalte para unhas. Dois. Em cores que me fascinaram. O detalhe é que nunca faço as unhas. Mas cada vez mais tenho olhado para elas e desejado que estivessem arrumadas e pintadas em cores que me fascinassem. Assim, para dar aqueles cinco segundos de contentamento entre uma coisa e outra, quando se fitam as mãos - hoje em dia não dá tempo quase nem de olhar para a cara do outro quanto mais de fitar as próprias mãos, isso é bem coisa sinhazinha do século XIX.

--> Aos poucos vou descobrindo que eu, assim como quase todas as mulheres da minha geração, vai ficando mais bonita na casa dos trinta. Mas a verdade a esse respeito não é uma elegia de Balzac e sim o fato de que ficando mais velhas apercebemo-nos da paulatina iminência da decadência e passamos a cuidar/preservar/curtir o que temos, enquanto ainda temos.

Isso não impede que eu tenha saudade do sentimento dos early 20's, quando me sentia bem sem uma mínima maquiagem corretiva, sem tirar sobrancelhas, sem depilação, sem sequer pentear o cabelo.

A verdade é que eu me sentia linda sendo Mowgli. Embora não fosse.

--> Você já viu uma pessoa secando o sofá com secador de cabelo? Effetto Gatto.

Se quiser usar secador de cabelo para secar sofá ou qualquer outra coisa, recomendo os secadores Taiff. São profissionais, o que equivale dizer que não queimam, ou que demoram uma eternidade para queimar.

--> As pessoas gritam, berram e cantam na frente do meu edifício às quatro da manhã. Embora eu tenha um sono de pedra, elas conseguem me acordar. Dá de tudo, é muito variado, sincrético, multiétnico. Dá gente cantando pro Exu Caveira na parada de ônibus às quatro da manhã - com o detalhe de que só passa um único ônibus na minha rua, que não circula entre meia-noite e seis da manhã. Surge gente se estapeando com o suposto ser amado e urrando baixarias e uivando de dor (quando os tapas atingem o alvo) às quatro da manhã. Aparece um pessoal combinando, aos gritos, eventos os mais variados, desde assaltos e pungas até birinaite (para a naite seguinte, por supuesto) às quatro da manhã. E tem quem só cante, mal, muito alto e desafinando, às quatro da manhã.

O peculiar é que os arroubos vocais começam a acontecer na esquina da rua, bem pertinho de onde meu prédio está, e vai perdendo a força após passar pela fachada do meu edifício.

Devo estar morando sobre um antigo cemitério indígena.

--> Por que todo mundo tem pelo menos um vizinho super-super louco? Louco mesmo. Surtado. Por quê?

quarta-feira, 4 de junho de 2008

get ready for this

Eiii, então, que saudade(?) desse maravilhoso(??) painel do blogspot. Não o via desde que era um dashboard, lá no finado blog - saiba você ou não o que é um dashboard do blogspot. Isso quer dizer "faz tempo".

Ok, vamos jogar limpo nisso aqui. Todo mundo que lê alguma coisa, seja a coisa que for, espera por algo. Deixemos claro o que você pode - e, principalmente, o que não pode - esperar desse local e desta que vos escreve.

Primeiro, não vou falar da minha vidinha no melhor estilo diarião-old-weblog-school. Sei que as pessoas andam muito roots ultimamente, usando bigodes, galochas, xadrez argyle e afirmando que o bacana do blog é exatamente o estilo diarião. Só que, seguintchi beibe, não rola. Meu umbigo não rende tanto assunto e é muito meu. De mods que não espere encontrar uma linha de texto 'querido diário', porque isso não vai acontecer.

Segundo, o ambiente (embora virtual) fala. Dá só uma olhada nessa figurinha aí no topo da página - de H.R. Geiger, a quem vergonhosamente não dei o crédito na imagem, providenciaremos - e me diz, o que você acha que pode encontrar aqui? Flores? Receitas de bolo? Sonetos de amor? Sexo tântrico? Não, né. Aqui é um lugar sem misericórdia. No country for old men. Se você aprecia o estado nefasto do ser humano, ou se ao menos suporta conviver com ele, seja bem-vindo. Do contrário, prossiga por sua conta e risco.

Terceiro, já sou naturalmente sombria e estou passando por uma fase sombria super-plus. Aos poucos, estou descobrindo que aquilo que parecia ser a luz no fim do túnel não passava de um reflexo atenuado e patético da minha ingênua e idealística esperança. Assim, o que vier aqui estará permeado - às vezes, encharcado e pingando - desse momento espiritual tão bonito, aquele em que você, até então pensando que 'tudo bem, quando chegar no fundo do poço dou impulso e volto à tona', descobre que o poço não tem fundo.

Quarta, e última - cabalístico, não? - eu não discuto na vida real. Muito menos na vida virtual. O tempo vem fazendo de mim uma mulher de poucas e definitivas ações e muito poucas, e mais definitivas ainda, palavras. O blog tem comentários porque gosto de feedback. Mas, na medida em que o feedback for prestado por gente imprestável, ele deixa de me interessar e perde sua razão de ser. Em outras palavras, se você quiser destilar ódio nos comentários, poderei ignorar e mais ainda poderei apagar. Só não espere resposta. Porque, da mesma forma como o poço não tem fundo e não tem luz no fim do túnel, aqui nesse lugar não tem eco. De nenhum tipo.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008