sexta-feira, 6 de junho de 2008

bidimensionalidade unidimensional

Ela tinha uma estranha empatia por todos os bichos fofinhos e bonecos simpáticos que essa ciência fundamental à vida humana, a propaganda, criava para divulgar produtos e, principalmente, convencer o incauto de que ele precisava desesperadamente do que era divulgado. Sentia-se entre enternecida e constrangida ao fitar, no verso da conta de luz, o bonequinho simpático e sorridente vestido com o uniforme da companhia de energia elétrica, alertando afavelmente sobre os riscos do mau uso da eletricidade. Tinha uma queda toda especial pelo boneco careca e bonachão que convidava as pessoas a jogar na loteria e, quem sabe, ter dinheiro para realizar doces e gentis sonhos que envolviam a cálida existência de uma família feliz. Na sua cabeça, o boneco ilustrando um empregado da companhia de energia elétrica tinha toda a aparência de alguém que era feliz com seu trabalho, que era condignamente remunerado e que ia contente, ao final de cada jornada cumprida, para um lar amoroso onde seria alimentado e nutrido de todas as boas e simples coisas que os humanos pateticamente necessitam. Para ela, o faceiro boneco careca da lotérica parecia um bem-amado marido e pai de família, uma pessoa gentil rodeada de carinho por todos os lados, cujos olhos de papel fitavam seu íntimo e pareciam convidá-la, 'venha, se você jogar, talvez você ganhe, talvez o amor aconteça, talvez as pessoas sorriam umas às outras com afeto verdadeiro, talvez isso tudo afugente esse corvo que rói incessantemente esse fígado que se regenera todos os dias e que lhe consome em dor e desespero'. Por alguns instantes ela era toda aturdimento, como podia ser assaltada por essas idéias inverossímeis que não reconhecia como suas, logo ela, que conhecera desde cedo, ávida, toda a bile da existência? Tendo mergulhado no poço escuro sem fundo das sombras da metade negra da condição humana e se familiarizado com diversas espécies de farpas, amputações e agonias, os ecos que as imagens meigas lhe evocavam não eram, em absoluto, confortantes. Pois que há muito já sabia que os empregados de qualquer lugar, inclusive da companhia de energia elétrica, não eram felizes com o seu trabalho, recebiam um pagamento muito aquém do merecido e jamais ouviam uma palavra de encorajamento. Iam longe os tempos em que descobrira que homens e mulheres não são bem-amados esposos, pais e mães de família, são apenas homens e mulheres cheios de desejos que ardem e lhes consomem, que questionam todo o tempo se deveriam ir ou se deveriam ficar e se a escolha feita foi mesmo a mais acertada - e, enquanto questionam, deixam de perceber e de fruir a eventual riqueza, ainda que pequena, que possuem.

Ela mesma queria ter a possibilidade de se doar o tanto que seus sentimentos lhe pediam. De poder ajudar qualquer pessoa que lhe procurasse, a qualquer hora e sem nenhuma reserva. E assim colher o sorriso aberto, sincero, proveniente da realização da pessoa auxiliada. Mas isso não era viável, pois as pessoas muitas vezes não querem auxílio: elas querem salvação. Dizem-lhe que querem aprender a andar, mas em verdade desejam é que você as carregue no colo, pelo maior tempo possível. Além disso, foi percebendo que a recíproca não é - nem nunca foi - verdadeira. Aqueles que conseguira auxiliar não tinham como auxiliar de volta. Fosse porque estavam muito ocupados com suas coisas - lembre-se, foram pessoas que precisaram de auxílio - ou porque não eram capazes de dar, somente de receber, fato é que eles não podiam. De forma que ela descobriu que a única mão amiga com que podia sempre contar era aquela que estava no final do seu próprio braço. E descobriu também que, se a única mão com que podia sempre contar era aquela ao final de seu braço, era fundamental mantê-la firme, forte e descansada, de sorte que estivesse em plenas condições quando dela precisasse. Assim, calou os sentimentos e procurou mostrar às pessoas sua nova descoberta, a própria mão da pessoa ao final do próprio braço dela, e dizer-lhes das maravilhas que aquela mão - aquela, e não a sua - poderia fazer pelo próprio dono. As pessoas retiravam-se, ofendidas, acreditando-se ludibriadas. E assim ela viu que os sorrisos de muitos eram meros expedientes para conseguir o máximo em troca de um mínimo esforço.

Andando pelas ruas, ela não entendia essa supervalorização de supostas virtudes tão divorciadas do espírito humano. Por que a celebração da generosidade, da solidariedade, do amor e da amizade, se o instinto humano é por natureza egoísta, mesquinho, invejoso, cruel? O que explicaria - se é que explicaria - a necessidade de manter uma eterna disputa interna entre desejo e virtude? Por que o sexo é dissociado do amor? E quem disse que amor é bom? Por que os relacionamentos de afeto são recheados de inveja, competição e ressentimentos? Por que, se cada um é único, todos se comparam uns com os outros? E, principalmente, por que, se sabia que tudo isso é tão abominável, por que ela não conseguia escapar a essa dualidade, que consome o que é humano desde a aurora da sua existência?

Lembrou-se de uma parábola contada quando era menina. Da existência de dois lugares distintos, sendo que em ambos havia era um círculo de pessoas, munidas de uma colher extremamente longa, em torno de uma grande pilha de arroz. Em um lugar, as pessoas enchiam as colheres extremamente longas e se alimentavam umas às outras, em total reciprocidade - e isso seria O Bom. No outro lugar, as pessoas insistiam em utilizar as colheres extremamente longas para pegar o arroz e levarem às suas próprias bocas, no que não tinham nenhum êxito, pois, em vista do comprimento da colher, que exigia grande movimentação no servir e levar à própria boca, o arroz caía todo da parte côncava, pelo que as pessoas todas permaneciam famintas, embora tivessem a grande pilha de arroz e o instrumento para se alimentarem - e isso seria O Ruim. E pensou que O Bom não era inteiramente bom, já que, em última análise, a sobrevivência dependia da gentileza de estranhos, da mesma forma que O Ruim não era de todo ruim, pois ao menos as pessoas ali tinham iniciativa. Concluiu que muitas vezes o erro está em se esperar demais de uma fórmula, uma convenção, um instrumento: não havia problema com as pessoas ou com o arroz, o problema era a colher. Decidiu que não usaria colheres e pegaria o arroz com as mãos nuas, aquelas que ficam ao final dos seus braços e nas quais pode sempre confiar. Dessa forma, jamais sentiria fome novamente.

Porém, continua sentindo o coração pateticamente apertado quando passa por uma lotérica ou recebe a conta de luz.

3 comentários:

Liv Araújo disse...

"E assim ela viu que os sorrisos de muitos eram meros expedientes para conseguir o máximo em troca de um mínimo esforço".
Isso aí, nêga, é dolorido mas é verdade. Mas sei lá, eu às vezes acho que durante esse sorrisos, os olhos da pessoa parece dois buracos sem globos oculares, ou então é como se a pessoa usasse botox.

Liv Araújo disse...

PARECEM!

Ou: "você não sabe... o quanto nós... somos PERVERSA".

Ana Roberta disse...

polianamente falando, acho, sinceramente, que falta, à esta menina, abrir as janelas.